29.12.08

Declaração Universal dos Direitos humanos


Declaração Universal dos Direitos humanos

Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;
Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos humanos conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração humanos;
Considerando que é essencial a protecção dos direitos humanos através de um regime de direito, para que o homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão;
Considerando que é essencial encorajar o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações;
Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais humanos, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declararam resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla;
Considerando que os Estados membros se comprometeram a promover, em cooperação com a Organização das Nações Unidas, o respeito universal e efectivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais;
Considerando que uma concepção comum destes direitos e liberdades é da mais alta importância para dar plena satisfação a tal compromisso:
A Assembléia Geral proclama a presente Declaração Universal
dos Direitos humanos
como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efectivos tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.

Artigo 1°

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

Artigo 2°

Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação.
Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.

Artigo 3°

Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo 4°

Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.

Artigo 5°

Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

Artigo 6°

Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da sua personalidade jurídica.

Artigo 7°

Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção da lei. Todos têm direito a protecção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo 8°

Toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.

Artigo 9°

Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo 10°

Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.

Artigo 11°

  1. Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.
  2. Ninguém será condenado por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam acto delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o acto delituoso foi cometido.

Artigo 12°

Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.

Artigo 13°

  1. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado.
  2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país.

Artigo 14°

  1. Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países.
  2. Este direito não pode, porém, ser invocado no caso de processo realmente existente por crime de direito comum ou por actividades contrárias aos fins e aos princípios das Nações Unidas.

Artigo 15°

  1. Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade.
  2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade.

Artigo 16°

  1. A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais.
  2. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos.
  3. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado.

Artigo 17°

  1. Toda a pessoa, individual ou colectivamente, tem direito à propriedade.
  2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.

Artigo 18°

Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

Artigo 19°

Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão.

Artigo 20°

  1. Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas.
  2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

Artigo 21°

  1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios, públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos.
  2. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país.
  3. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto.

Artigo 22°

Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país.

Artigo 23°

  1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego.
  2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.
  3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de protecção social.
  4. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses.

Artigo 24°

Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e as férias periódicas pagas.

Artigo 25°

  1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.
  2. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma protecção social.

Artigo 26°

  1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional dever ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito.
  2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.
  3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escholher o género de educação a dar aos filhos.

Artigo 27°

  1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.
  2. Todos têm direito à protecção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.

Artigo 28°

Toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efectivos os direitos e as liberdades enunciadas na presente Declaração.

Artigo 29°

  1. O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade.
  2. No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática.
  3. Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos contrariamente aos fins e aos princípios das Nações Unidas.

Artigo 30°

Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma actividade ou de praticar algum acto destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados.

Continuação: mutilação feminina



A VERDADE SOBRE A MUTILAÇÃO DA GENITÁLIA FEMININA
Por Nawal El Saadwi

"Eu também lembro do toque gélido dos azulejos do banheiro embaixo de meu corpo nu, e vozes desconhecidas

e cochichos interrompidos de vez em quando pelo som de algo metálico raspando, o que me lembrou o som de

um açougueiro quando afia a faca, antes de matar uma ovelha em um abatedouro."


Nawal El Saadawi é uma líder feminista egípcia, socialista, médica,
novelista e autora de uma clássico sobre as mulheres no Islã, A Face escondida de Eva.

Ela teve uma carreira distinta como diretora de Educação sobre Saúde no Ministério da
Saúde no Cairo, até ser sumariamente dispensada de seu cargo em 1972, como conseqüência
de suas de suas atividades e artigos políticos. O pior estava por vir, quando ela foi presa em
1981 com outras milhares de mulheres, por "crimes contra o Estado". Ela foi libertada apenas
após o assassinato do presidente Sadat. "Memórias de uma Prisão de Mulheres III"relata sua
experiência.

PARTE 1 A Metade Mutilada
1. A Questão que Ninguém Responderia.

Eu tinha 6 anos de idade naquela noite. Estava deitada em minha cama, quente e em paz naquele
estado prazeroso onde fica a metade do caminho entre estar acordado e dormindo, com os sonhos
róseos de infância sobrevoando a mente, como contos gentis em uma rápida sucessão. Eu senti
algo se movendo debaixo dos cobertores, algo como uma mão enorme, fria áspera percorrendo meu
corpo, como que procurando alguma coisa. Quase simultaneamente outra mão, tão fria, grande e
áspera quanto primeira tampou a minha boca, como me prevenindo para não gritar. Eles me carregaram
para o banheiro.

Eu não sei quantos deles eram, e também não lembro de seus rostos, ou se eram homens ou mulheres.
O mundo parecia, para mim, estar embrulhado numa neblina negra que não me deixava enxergar. Ou talvez
eles tivessem colocado algo para cobrir mus olhos.

Tudo o que eu lembro é que eu estava assustada e que eram muitos deles, e que prenderam minhas
mãos, meus braços e minhas coxas com ferro, para que não pudesse resistir ou mesmo me mover.

Eu também lembro do toque gélido dos azulejos do banheiro embaixo de meu corpo nu, e vozes
desconhecidas e cochichos interrompidos de vez em quando pelo som de algo metálico raspando,
o que me lembrou o som de um açougueiro quando afia a faca, antes de matar uma ovelha em um
abatedouro.

Meu sangue estava congelado em minhas veias. Para mim parecia que ladrões haviam invadido meu
quarto e me seqüestrado de minha cama. Eles estavam se preparando para cortar minha garganta,
como sempre acontecia com garotas desobedientes como eu nas estórias que minha velha avó gostava
tanto de me contar.

Eu agucei minhas orelhas tentando captar o som metálico. No momento em que este cessou, foi como
se meu coração tivesse parado de bater com ele. Eu não podia ver, e de algum modo minha respiração
parecia que havia parado também. Tentei imaginar o que estava fazendo o barulho cada vez mais perto
de mim. De algum modo aquela coisa não estava se aproximando do meu pescoço como eu esperava,
mas sim de outra parte do meu corpo.

Em algum lugar abaixo da minha barriga, como que procurando algo enterrado entre minhas coxas. Naquele
momento eu percebi que minhas coxas haviam sido separadas, e que cada um de meus membros inferiores
estavam mais longe possível um do outro, seguros por dedos de aço que eu nunca mais poderei esquecer
sua pressão. Eu sentia que a faca ou lâmina estava indo direto para baixo, em direção a minha garganta

Então derrepente a ponta metálica afiada pareceu cair entre minhas coxas, e lá cortar um pedaço de carne
de meu corpo. Eu gritei de dor, apesar da mão forte que tampava minha boca; uma dor que não era apenas
dor, era como uma chama ardente que percorreu todo o meu corpo. Depois de alguns momentos eu vi
uma piscina de sangue ao redor de meu quadril.

Eu não sabia o que eles haviam tirado do meu corpo e não tentei descobrir. Apenas chorei e chamei a
minha mãe por ajuda. Mas o pior choque de todos ocorreu quando eu olhei em volta e a vi de pé ao meu lado.
Sim, era ela, eu não poderia estar enganada, em carne e osso, bem no meio desses estranhos, falando com
eles e sorrindo para eles, como se eles não tivessem participado do corte de sua filha momentos atrás

Eles me carregaram até minha cama. Eu os vi pegando minha irmã, que era dois anos mais nova, exatamente
do mesmo modo com que eles me pegaram alguns minutos antes.

Eu gritei com toda minha força. Não! Não! Eu podia ver o rosto de minha irmã preso entre as grandes mãos
ásperas. Seus grandes olhos pretos e esbugalhados encontraram os meus por um rápido segundo, um
relance negro de terror que eu nunca esquecerei. Um tempo depois e ela se foi, atrás da porta do banheiro
onde eu havia acabado de estar. O olhar que nós trovamos parecia dizer: 'agora nós sabemos o que é. Agora
sabemos onde está nossa tragédia. Nós nascemos parte de um sexo especial, o sexo feminino. Nós
somos destinadas a experimentar o desgosto, e a ter parte de nosso corpo rasgado por mãos frias e

insensíveis'.

Minha família não era uma família egípcia sem educação. Ao contrário, ambos os meus pais tiveram sorte
o suficiente para ter uma ótima educação para os padrões daquela época. Meu pai era um formando da
universidade daquele ano (1937), e havia sido apontado como controlador geral da Educação da Província
de Menoufla, na região do Delta do Cairo do Norte. Minha mãe havia sido educada em escolas francesas
por seu pai, que era diretor geral de Recrutamento do Exército.

Não obstante, o costume de circuncidar garotas era muito presente naquela época, e nenhuma menina
conseguia escapar da amputação de seu clitóris, não importando se sua família vivia numa área rural
ou urbana.

Quando voltei para a escola após ter me recuperado da operação, perguntei ás minhas colegas de classe
e amigas sobre o que aconteceu comigo, apenas para descobrir que todas elas, sem exceção, haviam
passado por essa experiência, não importando a que classe social elas pertenciam (classe alta, classe
média ou classe média-baixa).

Em áreas rurais, entre as famílias mais pobres, todas as garotas são circuncidadas, como descobri
mais tarde por meus parentes em Kar Tahla. Esse costume ainda é muito comum nas vilas, e mesmo
nas cidades uma grande proporção de famílias acredita ser necessária a operação.

Tradução: Olívia Cappi
Revisão: Allan Ednei
http://www.indymedia.org/front.php3?article_id=78645&group=webcast


Mutilação genital feminina na Guiné e na Indonésia


O semanário português Expresso dá a notícia da divisão dos deputados do Parlamento guineense em relação à aprovação de uma lei para proibir a mutilação genital feminina no país. Fernando Gomes, fundador e antigo presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos, é um dos parlamentares que tenta fazer passar a lei, contra a resistência dos que não querem mexer com a tradição. Em Portugal e noutros Estados europeus com comunidades imigrantes provenientes de países onde se mutilam ainda os órgãos genitais das raparigas é completamente proibido realizar tal prática. Esperemos que os dirigentes políticos da Guiné-Bissau tenham a coragem de pelo menos dar os instrumentos legais àquelas que se empenham na luta contra este flagelo. Mesmo com aprovação da lei ainda haverá um longo caminho a percorrer para mudar as mentalidades e os costumes.

A Organização Mundial de Saúde estabelece uma tipologia dos tipos de mutilação que vão dos menos radicais, que podem limitar-se à realização de um pequeníssimo corte ritual no clítoris só até fazer sair uma gota de sangue, até outros que incluem a remoção do capuz do clítoris, ou do capuz e do próprio clítoris, ou a amputação completa destes e dos lábios menores, até aos casos mais graves, da chamada infibulação, em que após a ablação os lábios maiores são cosidos quase em todo o comprimento deixando apenas um pequeno orifício para passagem da urina e do sangue mentrual.

Também na Indonésia se mantém ainda a tradição da mutilação genital. De acordo com um estudo de que se deu notícia no jornal Kompas, citado no blogue Indonesia Matters, 90% das mulheres indonésias são circuncidadas. O mesmo blogue aponta para um artigo do New York Times, de Janeiro passado, onde se fala num valor ainda mais elevado, 96%. Este jornal inclui fotografias de uma sessão de mutilação em massa (mais de 200 numa manhã) realizada em Bandung pela Fundação Assalaam, cujo responsável pelos serviços sociais diz que “há três ‘benefícios’ para as raparigas: um, estabiliza a libido delas; dois, vai fazer a mulher ficar mais bonita aos olhos do marido; e três, dá-lhes equilíbrio psicológico”.

Os direitos humanos são universais e há que continuar a trabalhar para que cheguem também a estas vítimas da tradição.

http://jpesperanca.blogspot.com/2008/03/mutilao-genital-feminina-na-guin-e-na.html

PELO FIM DA MUTILAÇÃO FEMININA

Entidades e particulares engajam-se no combate ao milenar costume e ajudam filhas de africanas que vivem na Alemanha a superarem o choque cultural.

Uma conferência internacional promovida pelo Comitê Inter-Africano (IAC) em Addis Abeba, na semana passada, terminou com um apelo do Unicef pela abolição da circuncisão feminina até o ano de 2010 e a proclamação de um Dia Internacional contra esse costume milenar. Praticada em pelo menos 26 países africanos, a mutilação atinge cerca de dois milhões de meninas e adolescentes a cada ano. Calcula-se que no mundo vivam até 130 milhões de mulheres que foram submetidas a uma circuncisão.

Há anos que organizações de defesa dos direitos humanos do mundo ocidental vêm tentando coibir a prática, e mesmo na África difunde-se a consciência de que ela é uma afronta à dignidade das mulheres.

Seqüelas físicas e psíquicas

A médica alemã Solange Nzimegne-Gölz, que preside em Berlim a Sociedade pelos Direitos das Mulheres Africanas, conhece bem o assunto, ao qual se dedica há anos. Ela sabe dos problemas físicos e psíquicos das mulheres submetidas à prática, principalmente das que passaram pelo método mais radical da circuncisão: a infibulação, na qual são extirpados o clitóris e os lábios vaginais. Em seguida, o que sobra de um lado da vulva é costurado ao outro lado, deixando apenas um orifício minúsculo pelo qual a mulher urina e menstrua. "Dores, infecções e incontinência", resume a doutora Nzimegne-Gölz as seqüelas com as quais o corpo das afetadas luta o resto da vida. Isso sem falar na alma. E da humilhação da desfibulação, quando o marido na noite de núpcias volta a abrir com uma faca as genitálias da noiva.

O rito é milenar e muitos dos povos africanos acreditam que ele seja prescrito pelo islã. No entanto, não existe nenhuma passagem do Alcorão que o justifique, ressalta a médica alemã. Por isso é que políticos e ativistas dos direitos humanos também passaram a incluir líderes religiosos em seu trabalho de esclarecimento.

Primeiros sucessos

Rüdiger Nehberg (esq.) conseguiu proibição da circuncisão numa região da EtiópiaBildunterschrift: Großansicht des Bildes mit der Bildunterschrift: Rüdiger Nehberg (esq.) conseguiu proibição da circuncisão numa região da EtiópiaO aventureiro Rüdiger Nehberg — conhecido também no Brasil por seu empenho em favor dos índios ianomâmis — é exemplo de uma iniciativa bem-sucedida na África. Graças a sua atuação na província de Afar, na Etiópia, os chefes das tribos regionais proibiram a circuncisão feminina, em janeiro de 2002.

Mesmo que demore algum tempo até que a prática desapareça de todo, é um primeiro passo. Em alguns países, a proibição foi decretada pelo governo nacional. É o caso da Nigéria em 2002 e, neste ano, de Benin. "A gente percebe que alguma coisa está acontecendo", diz a doutora Nzimegne-Gölz com certo alívio.

Choque cultural

Todo o debate em torno da circuncisão feminina tem ainda outro efeito, nem sempre levado em consideração. Para meninas e adolescentes africanas — muitas vezes filhas de refugiados — que vivem num país ocidental, o choque cultural pode dificultar a formação de sua identidade. Enquanto as mães ainda cresceram num ambiente cultural homogêneo, as filhas se vêem expostas à discrepância entre os valores tradicionais de sua cultura original e a crítica da nova sociedade em que vivem.

Na Alemanha, o projeto Forward Germany, de Frankfurt, trabalha justamente com adolescentes africanas de 14 a 22 anos, dando-lhes a oportunidade de falar sobre seus conflitos, em intercâmbio com outras afetadas. Em reconhecimento por sua atuação, o projeto — que pretende ampliar-se para uma rede — recebeu recentemente o Prêmio de Direitos Humanos de uma fundação alemã dedicada a questões femininas.



Mutilações genitais contra meninas do Sudão estão com os dias contados?


Menina sudanesa em campo de refugiados

Surgem os primeiros passos para salvá-las da mutilação genital, uma prática que assola 28 países e faz 2 milhões de vítimas por ano


por Rita Freire

Uma notícia discreta do IRIN, rede de informações das Nações Unidas na África, sinaliza para uma mudança fundamental na perspectiva de vida das meninas que crescem no Sudão. Se o governo cumprir o compromisso que assumiu no início do mês, elas terão menos riscos de ser mutiladas como foram suas mães e irmãs mais velhas. A prática milenar, promete o presidente Umar Hasan al-Bashir, será banida.

O Sudão é o país do mundo com mais alta prevalência de MGF — mutilação genital feminina. Segundo a ONU, pelo menos de 70% a 90% da sua população feminina jovem e adulta passaram pelo rito violento antes de chegar à puberdade. Foram mutiladas praticamente todas as mulheres que não pertencem às classe sociais mais privilegiadas, e uma boa parte destas também.

Cumprir a promessa não será fácil. Outros catorze países africanos já tomaram medidas legais para coibir a MGF, mas ainda enfrentam resistências. “A mutilação faz parte da vida cotidiana, como comer arroz, e sempre foi assim”, disse ao Mujeres Hoy, portal da Isis Internacional, a ativista Agnes McAnthony, coordenadora de uma difícil campanha para erradicá-la. “Se você come arroz toda vida e venho dizer que está errado, você deixará de comê-lo”?

O prato perverso que as meninas são obrigadas a engolir em 28 países, incluindo Ásia e Oriente Médio, tem três modalidades. No Sudão, pratica-se a mais cruel, a infibulação. É uma soma das outras duas (clitoridectomia e excisão, que consistem na extirpação do clitóris e retirada dos lábios vaginais) e se completa com a sutura externa da vulva.

A mutilação geralmente é feita, sem anestésicos ou instrumentos cirúrgicos, por pessoa da família ou da comunidade, parteira ou profissional de saúde contratada. É tida como uma celebração, a exemplo da circuncisão masculina. Mas em sofrimentos, não se compara ao rito de passagem dos rapazes para a vida adulta. As meninas, muitas com quatro anos de idade, são cortadas a navalha, tesouras ou mesmo cacos de vidro, antes de serem costuradas. Algumas não sobrevivem à hemorragia, gangrena ou infecções na área pélvica. Outras sofrerão o resto de suas vidas com dores menstruais, infecções urinárias, impedimentos para uma vida sexual saudável e novas violências no casamento e nos partos. A Organização Mundial de Saúde estima que 130 milhões de crianças e mulheres em todo mundo tenham sido mutiladas, a um ritmo de 2 milhões por ano.

O anúncio do governo, feito pelo ministro da saúde Ahmed Osman Bilal, em um seminário conjunto com a Unicef, é radical: penalizar quem submeta crianças e jovens à MGF. Mas a maior esperança reside no compromisso de educar e tentar dissociar a prática de valores religiosos ou sociais. As origens da mutilação são desconhecidas. Sabe-se apenas que antecede o surgimento do judaísmo, cristianismo e islamismo — e não tem relação com os fundamentos de nenhum deles. O que era chamado de circuncisão faraônica perpetuou-se depois, com presença maior em países de maioria muçulmana, mas praticada igualmente por cristãos e animistas que moram nesses países.

Os milênios da tradição também determinaram padrões de aceitação da mulher na vida social. A mutilação é tida pelos homens sudaneses — e dos demais países que a adotam — como prova de honra da futura esposa e condição exigida para o casamento. Muitas meninas de Mali ainda são convencidas de que seus bebês morrerão se não forem operados, como conta Fatoumata Siré Diakite, da Associação para o Avanço dos Direitos das Mulheres de Mali Um programa educativo eficaz contra a MGF teria de focalizar até as crianças, e demonstrar às meninas “que elas podem continuar sendo mulheres completas”, adverte Agnes McAnthony.

Sem educar para novos valores, punir será difícil. A infibulação não é feita em clínicas e hospitais passíveis de controle — já existe uma proibição a essa prática médica —, mas na intimidade das famílias e comunidades, que mantêm o ritual secretamente. É o caso do Quênia, onde a mutilação foi proibida em 2001, com a aprovação da Lei da Infância, mas as mudanças lentas só estão ocorrendo em alguns lugares a partir de uma cuidadosa campanha promovida por um conjunto de 67 organizações sociais.

Até o termo “mutilação” é substituído, por algumas organizações, pelo “
excisão”, para evitar a idéia de “pais mutiladores”, o que pode dificultar o diálogo. As campanhas de organizações africanas e internacionais para mostrar os riscos e conseqüências danosas da MGF no Sudão já enfrentaram um revés no último ano, segundo o British Medical Journal. Linda Osarenren, diretora do Comitê Inter-africano da ONU, conta que a situação piorou nesse período porque alguns profissionais de saúde e líderes religiosos reagiram, em campanhas de contra-ataque. Uns passaram a propagandear pretensos benefícios da mutilação para a saúde e outros começaram a defender que a MGF se transforme em lei. Mas o debate proibido, pelo menos, começou.

Romper o silêncio tem sido um alento para as mulheres africanas. Fatoumata Siré Diakite, do Mali, comemora algumas novidades. “Que um chefe de aldeia se sente para conversar sobre este tema com as mulheres é uma mudança enorme”, ela explica: “Não é fácil para os homens de nosso país referir-se à sexualidade feminina”.

Outra possibilidade que a legislação abre é a busca de socorro por meninas e jovens que tentam escapar do ritual. Centenas de meninas do sul do Quênia, fugitivas de casa, pediram ajuda nos últimos meses, segundo o portal da Isis Internacional, Com a prometida mudança de atitude do governo as meninas sudanesas saberão, pelo menos, onde buscar socorro.

http://www.vermelho.org.br/diario/2003/1207/1207_sudao.asp

O Holocausto Silencioso das Mulheres

Não há dados concretos sobre a origem da mutilação genital feminina (MGF). A mutilação generalizada parece ter tido origem na África Central na Idade Pedra.

Esta prática que consiste em extirpar total ou parcialmente os genitais externos femininos é um procedimento doloroso que entre outras coisas faz com que as relações sexuais em vez de serem agradáveis para a mulher são lesivas e humilhantes.

Principalmente nos países europeus as sanções não são muito eficazes pois há países que "fecham os olhos"...

Nos séculos XIX e XX as mulheres eram excisadas na Europa (no Reino Unido ) e nos EUA quando tinham problemas como histeria, epilepsia ou doenças mentais.

Segundo a OMS são excisadas 100 a 130 milhões de mulheres todos os anos com altos riscos de vida. Pratica-se geralmente em crianças dos 4 aos 10 anos.

Países onde mais se pratica:
Em África:
São 28 os países onde mais se praticam as mutilações femininas, sendo os piores o Sudão, a Somália, Djibouti, Etiópia , Burkina Fasso, Serra Leoa, e Gambia. Na Guiné-bissau 50% das mulheres são excisadas. Apenas 12 ou 20 países africanos têm leis ou recomendações que proíbem o MFG mas poucos têm leis especiais e eficazes.
Apenas 12 ou 20 países africanos têm leis ou recomendações que proíbem o MFG mas poucos têm leis especiais e eficazes.

Nos países Asiáticos:
Nalgumas comunidades como a Índia, Indonésia e Malásia.

No Médio Oriente:
Omán, Yemen, Bahrein e Emiratos Árabes Unidos.

Com a imigração começou a alastra-se a muitos países Europeus como a Áustria, a Alemanha, a Bélgica, a Franca, Países Baixos, Suécia e também Japão e Nova Zelândia

Iniciativas de alguns países para abolição destas terríveis praticas:

- Como complemento das informações proporcionadas por Alemanha e França no ano passado, a Suécia e Nova Zelândia informaram este ano quais as medidas adoptadas nos seus países para lutar contra tais praticas e que foram principalmente a adopção de medidas que consideram as MFG infracções penais sancionadas pelas respectivas legislações. Não têm sido contudo muito eficazes porque nestes países se "fecham os olhos" ao problema.

- Conforme consta no documento das Nações Unidas de 04 de Julho de 2001 e na medida em que as leis penais são numerosa mas longe de ser eficientes e eficazes em 100%, a Suécia e Nova Zelândia introduziram medidas preventivas dirigidas a mudar as mentalidades.

- O banco mundial admite reduzir a dívida dos países que combatam a excisão feminina.

O combate à excisão não está ainda na lista de prioridades políticas mas se os líderes do mundo decidirem acabar com ela isso é possível.

Luta pela Erradicação
Por insistência de algumas corajosas mulheres, o assunto tem sido divulgado.

Felizmente que desde o Sec. XIX se tem incrementado a luta pela abolição da mutilação genital feminina das mulheres. Simone Beauvoir a famosíssima escritora francesa foi quem denunciou ao mundo estas praticas tão desumanas que tem sido tabu ate há muito pouco tempo. Ela dizia: "NÃO NASCEMOS VITIMAS, MAS TORNAMO-NOS".

Depois da Simone de Beauvoir, tem sido Emma Bonino quem mais se tem batido pela abolição destas praticas consuetudinárias absolutamente condenáveis.
Sendo uma grande defensora dos direitos das mulheres, ganhou conjuntamente com outras mulheres o prémio da paz Príncipe das Astúrias-Espanha pelo seu trabalho. Pela luta contra a burka no Afeganistão, foi detida pelos talibans o que provocou um escândalo internacional, tendo em consequência ganho o premio Fleischman-Hillard Europe concedido anualmente ao melhor comunicador europeu pela revista Britânica PR Wee. Comissária europeia para ajuda humanitária tem sido um extraordinário exemplo do que as mulheres em posição de destaque podem fazer. Como parlamentar europeia, sugeriu em fins de 2000, em conjunto com outros colegas, uma proposta denunciando o dramático tema da MGF que foi assinada por 318 dos 626 membros e que propunham que o dia 29 de Novembro ficasse como o dia internacional contra a mutilação genital feminina. Essa proposta ainda não foi ratificada.

Segundo notícias da AFROL em Angola e no que se refere a MGF produziram-se, há anos, raros episódios em zonas de difícil acesso.

Em Portugal uma jovem jornalista do jornal o Público de nome Sofia Branco foi galardoada pelo Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Éticas com o grande premio de jornalismo "Maria Lamas" em Junho de 2003 por um artigo sobre este tema.

Porque é necessário que se tome consciência deste flagelo que é uma das maiores violências contra as mulheres e porque a união faz a força, devemos juntar-nos às laboriosas mulheres que estão lutando árduamente e com imensas dificuldades para que possamos erradicar estas tão dramáticas praticas e para que as gerações vindouras possam ser mais saudáveis, felizes e livres nas suas opções.


Nós, as mulheres que dizemos presente a este chamamento, decidimos falar e actuar, conscientes de que o silêncio é sempre o melhor aliado de uma terrível prática que segue cobrando milhões de vítimas.

http://www.xiboa.com/Mulheres/Holocausto.htm

Mutilação Genital Feminina

Países que praticam a Mutilação Genital Feminina

São 28 os países do continente africano que mantêm os rituais iniciáticos que incluem alguma forma de mutilação genital feminina. A prática é referida ainda em algumas comunidades de países asiáticos, como Índia, Indonésia e Malásia; e do Oriente Médio, como Iêmen, Bahrein, Emirados Árabes Unidos e Omã.

Benim: 50% das mulheres.
Burkina Faso: 70% das mulheres.
Camarões: 20% das mulheres.
Chade: 60% das mulheres.
Costa do Marfim: 60% das mulheres.
Djibuti: 98% das mulheres.
Egipto: 80% das mulheres.
Eritreia: 90% das mulheres.
Etiópia: 90% das mulheres.
Gâmbia: 89% das mulheres.
Gana: 30% das mulheres.
Guiné-Bissau: 50% das mulheres.
Guiné-Conacri: 50% das mulheres.
Libéria: 60% das mulheres.
Mali: 80% das mulheres.
Mauritânia: 25% das mulheres.
Niger: 20% das mulheres.
Nigéria: 60% das mulheres.
Quénia: 50% das mulheres.
República Centro-Africana: 50% das mulheres.
República Democrática do Congo : (ex-Zaire): 5% das mulheres.
Senegal: 20% das mulheres.
Serra Leoa: 90% das mulheres.
Somália: 98% das mulheres.
Sudão: 89% das mulheres.
Tanzânia: 10% das mulheres.
Togo: 50% das mulheres.
Uganda: 5% das mulheres.

Incisão não significa Islã

As confusões entre excisão feminina e islã são freqüentes, não havendo qualquer razão para a prática ser relacionada com os muçulmanos, pois o Corão nada diz sobre o assunto, embora existam alguns ahadith (palavras e ações atribuídas a Maomé) que fazem referência a ela.

Do 1,2 bilhão de seguidores de Maomé existentes em todo o mundo, apenas uma quinta parte pratica a MGF. Além disso, o costume é também praticado pelos cristãos coptas do Egito, pelos cristãos e judeus falasha (ou Beta Israel) da Etiópia, pelos cristãos do Sudão e por várias tribos animistas.

Apesar de, no caso da Guiné, a excisão ser praticada apenas pelas comunidades islamizadas, isso não significa que a prática esteja relacionada com o islã. As origens da excisão são desconhecidas, mas sabe-se que recuam muito no tempo, fazendo dela uma prática milenar, que já foi seguida por muçulmanos, cristãos e judeus.

Dados: Unicef - publico.pt



A VERDADE SOBRE A MUTILAÇÃO DA GENITÁLIA FEMININA


"Eu também lembro do toque gélido dos azulejos do banheiro embaixo de meu corpo nu, e vozes desconhecidas e cochichos interrompidos de vez em quando pelo som de algo metálico raspando, o que me lembrou o som de um açougueiro quando afia a faca, antes de matar uma ovelha em um abatedouro."
Nawal El Saadawi é uma líder feminista egípcia, socialista, médica,
novelista e autora de uma clássico sobre as mulheres no Islã, A Face escondida de Eva.
Ela teve uma carreira distinta como diretora de Educação sobre Saúde no Ministério da
Saúde no Cairo, até ser sumariamente dispensada de seu cargo em 1972, como conseqüência
de suas de suas atividades e artigos políticos. O pior estava por vir, quando ela foi presa em
1981 com outras milhares de mulheres, por "crimes contra o Estado". Ela foi libertada apenas
após o assassinato do presidente Sadat. "Memórias de uma Prisão de Mulheres III"relata sua
experiência.
PARTE 1 A Metade Mutilada
1. A Questão que Ninguém Responderia.
Eu tinha 6 anos de idade naquela noite. Estava deitada em minha cama, quente e em paz naquele
estado prazeroso onde fica a metade do caminho entre estar acordado e dormindo, com os sonhos
róseos de infância sobrevoando a mente, como contos gentis em uma rápida sucessão. Eu senti
algo se movendo debaixo dos cobertores, algo como uma mão enorme, fria áspera percorrendo meu
corpo, como que procurando alguma coisa. Quase simultaneamente outra mão, tão fria, grande e
áspera quanto primeira tampou a minha boca, como me prevenindo para não gritar. Eles me carregaram
para o banheiro.
Eu não sei quantos deles eram, e também não lembro de seus rostos, ou se eram homens ou mulheres.
O mundo parecia, para mim, estar embrulhado numa neblina negra que não me deixava enxergar. Ou talvez
eles tivessem colocado algo para cobrir mus olhos.
Tudo o que eu lembro é que eu estava assustada e que eram muitos deles, e que prenderam minhas
mãos, meus braços e minhas coxas com ferro, para que não pudesse resistir ou mesmo me mover.
Eu também lembro do toque gélido dos azulejos do banheiro embaixo de meu corpo nu, e vozes
desconhecidas e cochichos interrompidos de vez em quando pelo som de algo metálico raspando,
o que me lembrou o som de um açougueiro quando afia a faca, antes de matar uma ovelha em um
abatedouro.
Meu sangue estava congelado em minhas veias. Para mim parecia que ladrões haviam invadido meu
quarto e me seqüestrado de minha cama. Eles estavam se preparando para cortar minha garganta,
como sempre acontecia com garotas desobedientes como eu nas estórias que minha velha avó gostava
tanto de me contar.
Eu agucei minhas orelhas tentando captar o som metálico. No momento em que este cessou, foi como
se meu coração tivesse parado de bater com ele. Eu não podia ver, e de algum modo minha respiração
parecia que havia parado também. Tentei imaginar o que estava fazendo o barulho cada vez mais perto
de mim. De algum modo aquela coisa não estava se aproximando do meu pescoço como eu esperava,
mas sim de outra parte do meu corpo.
Em algum lugar abaixo da minha barriga, como que procurando algo enterrado entre minhas coxas. Naquele
momento eu percebi que minhas coxas haviam sido separadas, e que cada um de meus membros inferiores
estavam mais longe possível um do outro, seguros por dedos de aço que eu nunca mais poderei esquecer
sua pressão. Eu sentia que a faca ou lâmina estava indo direto para baixo, em direção a minha garganta
Então derrepente a ponta metálica afiada pareceu cair entre minhas coxas, e lá cortar um pedaço de carne
de meu corpo. Eu gritei de dor, apesar da mão forte que tampava minha boca; uma dor que não era apenas
dor, era como uma chama ardente que percorreu todo o meu corpo. Depois de alguns momentos eu vi
uma piscina de sangue ao redor de meu quadril.
Eu não sabia o que eles haviam tirado do meu corpo e não tentei descobrir. Apenas chorei e chamei a
minha mãe por ajuda. Mas o pior choque de todos ocorreu quando eu olhei em volta e a vi de pé ao meu lado.
Sim, era ela, eu não poderia estar enganada, em carne e osso, bem no meio desses estranhos, falando com
eles e sorrindo para eles, como se eles não tivessem participado do corte de sua filha momentos atrás
Eles me carregaram até minha cama. Eu os vi pegando minha irmã, que era dois anos mais nova, exatamente
do mesmo modo com que eles me pegaram alguns minutos antes.
Eu gritei com toda minha força. Não! Não! Eu podia ver o rosto de minha irmã preso entre as grandes mãos
ásperas. Seus grandes olhos pretos e esbugalhados encontraram os meus por um rápido segundo, um
relance negro de terror que eu nunca esquecerei. Um tempo depois e ela se foi, atrás da porta do banheiro
onde eu havia acabado de estar. O olhar que nós trovamos parecia dizer: 'agora nós sabemos o que é. Agora
sabemos onde está nossa tragédia. Nós nascemos parte de um sexo especial, o sexo feminino. Nós
somos destinadas a experimentar o desgosto, e a ter parte de nosso corpo rasgado por mãos frias e insensíveis'.
Minha família não era uma família egípcia sem educação. Ao contrário, ambos os meus pais tiveram sorte
o suficiente para ter uma ótima educação para os padrões daquela época. Meu pai era um formando da
universidade daquele ano (1937), e havia sido apontado como controlador geral da Educação da Província
de Menoufla, na região do Delta do Cairo do Norte. Minha mãe havia sido educada em escolas francesas
por seu pai, que era diretor geral de Recrutamento do Exército.
Não obstante, o costume de circuncidar garotas era muito presente naquela época, e nenhuma menina
conseguia escapar da amputação de seu clitóris, não importando se sua família vivia numa área rural
ou urbana.
Quando voltei para a escola após ter me recuperado da operação, perguntei ás minhas colegas de classe
e amigas sobre o que aconteceu comigo, apenas para descobrir que todas elas, sem exceção, haviam
passado por essa experiência, não importando a que classe social elas pertenciam (classe alta, classe
média ou classe média-baixa).
Em áreas rurais, entre as famílias mais pobres, todas as garotas são circuncidadas, como descobri
mais tarde por meus parentes em Kar Tahla. Esse costume ainda é muito comum nas vilas, e mesmo
nas cidades uma grande proporção de famílias acredita ser necessária a operação.

Tradução: Olívia Cappi
Revisão: Allan Ednei

Mutilação genital feminina



A Organização Mundial de Saúde – OMS – e outros institutos e organizações internacionais alertam para o fato de que de 100 a 140 milhões de meninas e mulheres em todo o mundo já tenham sido submetidas à chamada mutilação genital, e mais 2 milhões 'corram o risco' de passar por esse procedimento a cada ano.

A remoção do clitóris é comum em 28 países da África, além de regiões do Oriente Médio e da Ásia. No site da OMS há breves explicações sobre as razões que motivam a mutilação genital: serviria para garantir a virgindade das mulheres até o casamento e assim valorizá-las; as partes sexuais seriam removidas por razões de assepsia, ou ainda para diminuir o desejo sexual feminino - o que manteria as mulheres fiéis no casamento. Motivos religiosos são também brevemente citados.

Os grupos de combate a essa prática enumeram complicações graves para a saúde e o psicológico das mulheres. Existem vários riscos, inclusive o de morte e o da transmissão da Aids. Para muitas, a dor nunca passa. A menstruação e o parto ficam ameaçados, as relações sexuais tornam-se dolorosas e o prazer sexual da mulher é tolhido. Infecções e todo tipo de problema na saúde sexual feminina estão relacionados à brutalidade da excisão, feita na maioria das vezes com instrumentos não-esterilizados e usados em várias meninas numa mesma ocasião, e sem anestesia.

No entanto, o tratamento dado a práticas comuns a certas sociedades, e que são repudiadas pelo ocidente, levanta alguns questionamentos. A mutilação genital é um processo de origem cultural, religiosa e social, intrínseco a sociedades africanas, asiáticas e do Oriente Médio, e muitas vezes desejado pelas mulheres que são motivadas a se submeter à operação por várias razões estranhas à compreensão das sociedades ocidentais.

A também chamada excisão é para muitas mulheres um rito de passagem, algo importante para as meninas das comunidades em que é praticada. As próprias mulheres acreditam nisso, por vezes discriminando aquelas que não passaram pela mutilação. A Care, organização sediada nos Estados Unidos com o objetivo de defender os direitos humanos especialmente femininos e que tem uma campanha exclusiva para o combate à mutilação genital feminina , conta em seu site que uma das entrevistadas, no Sudão, disse que a comida feita por uma mulher que não houvesse sofrido a mutilação era suja. No Quênia, a organização observou preconceito religioso: havia pessoas dizendo que mulheres que não passaram pela excisão não podiam ser muçulmanas – costuma-se associar a prática à devoção ao islamismo. Muito poucas pessoas, especialmente entre os homens, sabiam das conseqüências da mutilação genital para a saúde, relata a ONG.

Segundo a Care, não há muita opção para as mulheres que vivem nas comunidades em que é comum a mutilação genital. As meninas que decidem não se submeter à prática, mas continuam vivendo no mesmo grupo, enfrentam problemas de socialização, são hostilizadas e excluídas. Por isso a organização se propõe, inclusive, a dar apoio e proteção às famílias que se recusam a submeter suas meninas e mulheres à prática.

A Care afirma, no entanto, que não é comum às mulheres que vivem nessas comunidades não desejarem se submeter à prática por livre e espontânea vontade. Freqüentemente não existe uma associação forte na cabeça das pessoas com as conseqüências da prática. E, nos lugares onde a excisão é universal, não há outros pontos de referência, muitas vezes. Todas as meninas e mulheres são iguais nesse ponto, explica Susan Igras, especialista do Núcleo de Saúde Sexual e Reprodutiva da Care. As pessoas que praticam a circuncisão valorizam muito os significados positivos relacionados a ela, complementa.

Um outro olhar

Helen Caroline Negrão, de 26 anos, cursou Relações Internacionais e decidiu fazer seu trabalho final de curso unindo o que estudou na faculdade às áreas de Direitos Humanos e Antropologia Cultural, mais especificamente o caso da mutilação genital. Eu me interessei por esse assunto por vários motivos e o primeiro deles trata do etnocentrismo, que é a uma visão do outro a partir de nossos modelos, nossos valores, e, particularmente, do eurocentrismo, da visão salvadora que a cultura européia tem sobre o continente africano de modo geral desde a colonização. Meu maior sonho era poder entender um pouco mais sobre isso de modo imparcial, conta.

Em seu trabalho acadêmico, Helen compara a mutilação genital a práticas que fazem parte da cultura ocidental, e levanta questionamentos sobre o fato de muitas vezes as mulheres optarem pela excisão, em vez de serem obrigadas, como se costuma interpretar através das colocações da mídia. Nossa sociedade também tem os seus costumes. Poderia citar como um deles o caso de tratamento de crianças que nascem sob a condição de intersexuais. Como pode um exame de sangue determinar se aquela pessoa terá realmente o sexo que sua 'genética' ou seus pais determinaram? Não é um crime extirpar um órgão saudável e não fornecer a chance de a pessoa optar por ela mesma se ela quer ou não ter aquele órgão?, questiona.

Quando indagada a respeito da maneira como os grupos em que a Care atua têm recebido o trabalho da organização – se eles não estariam se sentindo invadidos ao notar que pessoas de fora da comunidade estariam tentando modificar suas tradições, crenças e costumes -, a especialista Susan Igras mostrou concordar, afirmando que esse é um dos obstáculos enfrentados no combate à mutilação, já que ela está arraigada nesses grupos.

Segundo a antropóloga Elielma Machado, da PUC-Rio, em primeiro lugar as organizações que pretendem combater a prática precisam ter cuidado durante o trabalho de coleta de informações a respeito da mutilação genital nas comunidades. Muitas vezes as informações estão contaminadas por impressões e valores etnocêntricos que inviabilizam a compreensão do significado para as pessoas e grupos sociais envolvidos com a prática em questão, analisa. Para que ocorra a mudança de idéia com relação à prática da chamada mutilação genital feminina é fundamental que haja a vontade de mudar de pelo menos algumas pessoas que vivem ou tenham vivido nas sociedades, que sabem – reconheçam - os símbolos e significados subjacentes à prática. Caso contrário a intervenção externa não se justifica, complementa a antropóloga.

Ainda segundo Elielma, como muitas ações ocidentais sobre grupos africanos e asiáticos têm historicamente como pano de fundo um movimento de dominação, essas sociedades podem vir a reagir da maneira avessa ao que se espera, endossando ainda mais a prática como forma de reagir à dominação. Manter a prática adquire ainda mais importância, torna-se uma forma de resistência à dominação. Ou seja, o que você chama de sacrifício e dor tem outro significado, (...) 'fortes dores e riscos de saúde' seriam formas de demonstração de pertencimento ao grupo, sociedade e cultura, explica.

A Care explica que expõe os problemas originados da mutilação às comunidades, mas deixa as decisões nas mãos de seus membros, restringindo-se a apresentar-lhes fatores que os estimulem a refletir a respeito da prática.

Questão de direitos humanos: a tradição X a lei

Uma outra questão de destaque entre os assuntos relacionados à mutilação genital refere-se ao poder de escolha. Uma mulher adulta pode optar pela mutilação, sabendo de sua função cultural, social e religiosa e até de suas conseqüências e do risco de morte, mas uma criança não tem esse discernimento.

Helen Negrão acredita que talvez se deva fazer uma separação entre as mulheres adultas que optam pela mutilação por questões diversas e as meninas, que são submetidas à prática ainda crianças. Para fundamentar essa reflexão, ela cita um trecho da publicação da Anistia Internacional Mulheres e direitos humanos, trabalho coordenado por Helder Vieira dos Santos que data de 1995. Enquanto uma mulher adulta é suficientemente livre para se submeter a um ritual ou tradição, uma criança não tem qualquer opinião formada e não consente, mas é simplesmente submetida à operação enquanto está totalmente vulnerável (...) as descrições disponíveis sobre a reação das crianças indicam uma prática comparável à tortura, relata o texto.

O sofrimento e o ato de tortura associados à mutilação levaram à condenação, a dez anos de prisão, de um imigrante da Etiópia morador dos Estados Unidos, pai de uma menina de sete anos de idade que a submeteu a uma mutilação genital quando ela tinha apenas dois anos. A mãe da menina, já separada do pai e que não concordou com a atitude dele, ajudou a passar uma lei na Georgia contra a mutilação genital – que já era considerada ilegal em 16 estados norte-americanos e proibida para menores de 18 anos por lei federal desde 1997 no país. Além de já existir legislação contra a prática nos EUA, a Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Setembro de 1990, a considera um ato de tortura e abuso sexual.

Na Grã-Bretanha, há um esforço grande em direção a dar fim à prática da mutilação genital, realizada dentro do território inglês por imigrantes ou até mesmo no exterior, para onde meninas são enviadas para fazer a remoção. Ambas as atitudes são proibidas desde 2004, de acordo com lei editada pelo governo britânico.

O hospital Saint Thomas, no centro de Londres, realiza por ano em torno de 200 operações de reversão, restaurando a abertura natural da vagina de mulheres que sofreram mutilação genital. A operação é necessária quando a mulher sofreu o tipo mais grave de circuncisão, o tipo 3, que consiste na retirada de dois terços dos genitais. A vagina é costurada, restando apenas uma pequena abertura.

O ginecologista somaliano Abdulcadir Omar Hussein, que vive em Londres, apesar de declarar ser contra a mutilação genital sugere que, se for para ser feita, ao menos seja realizada de uma forma menos violenta à saúde da mulher, com uma cirurgia menos bruta. Em outros países, também com grande número de imigrantes vindos de comunidades em que a excisão é praticada – Austrália, Noruega, França, Suécia e Canadá – já adotaram lei específicas contra a prática.

Segundo dados do Fundo para a População das Nações Unidas (UNFPA), dos 28 países africanos em que ocorre o ritual apenas 12 têm leis ou recomendações relacionadas à mutilação.

O Sudão foi o primeiro Estado africano a interditar a excisão, em 1946 – mas somente em sua pior forma, continuando a permitir o corte simbólico do clitóris. O novo Código Penal, de 1993, no entanto, não faz qualquer referência à mutilação.

No Egito, um decreto presidencial de 1958 proibiu a excisão. Em 1996, o Ministério da Saúde acabou com as licenças para os excisadores, interditando a atividade. Um ano depois, um tribunal revogou a decisão.

As leis do Gana, Guiné-Conacri, Burkina Faso, República Centro-Africana, Costa do Marfim, Djibuti, Senegal, Tanzânia e Togo condenam a mutilação, com penas que vão de seis meses de reclusão à prisão perpétua. No Quênia, um decreto presidencial desaconselha a prática. Porém, até Junho de 2000, ocorreram detenções somente no Burkina Faso, Gana, Egito e Senegal.

Na Guiné-Bissau, uma proposta de interdição da mutilação genital apresentada em 1995 foi rejeitada. No entanto, o Parlamento aprovou a recomendação de julgar os responsáveis pela prática se esta resultasse na morte das excisadas. Uma nova lei está em cima da mesa no Parlamento.

Pressão pelo fim da mutilação genital feminina cresce no Egito

20/09 - 19:06 - The New York Times


EGITO – Os homens de uma pobre comunidade rural estavam agitados. Uma menina de 13 anos foi levada ao consultório do médico para remover seu clitóris, uma cirurgia considerada necessária aqui para preservar a castidade e a honra.

A menina morreu, mas isso não foi motivo de revolta. Depois de sua morte, o governo fechou a clínica e isso sim deixou todos irritados.

“Eles não nos impedirão”, gritou Saad Yehia, dono de uma casa de chá na rua principal. “Nós apoiamos a circuncisão!”, ele gritava sem parar.

“Mesmo se o estado não gostar, nós iremos fazer circuncisão nas meninas”, gritou Fahmy Ezzeddin Shaweesh, um ancião na vila.

A circuncisão, como seus apoiadores a chamam, ou mutilação genital feminina, como seus opositores se referem, se tornou foco de um cruel debate no Egito esse verão. Uma campanha nacional para acabar com a prática se tornou um dos movimentos sociais mais poderosos no Egito em décadas, unindo uma improvável aliança de forças governamentais, líderes religiosos e ativistas.

Apesar de o ministro da Saúde do Egito ter ordenado o fim da prática em 1996, ele permitiu exceções em casos de emergências, um buraco que os críticos descrevem como tão amplo que praticamente deixou a proibição sem significado. Mas agora o governo quer forçar uma proibição mais rígida.

Durante séculos, as egípcias entre 7 e 13 anos fizeram o procedimento, às vezes por um médico, outras por um barbeiro ou qualquer um na vila que o realizasse. Em 2005, uma pesquisa governamental sobre saúde apontou que 96% das milhares de mulheres casadas, divorciadas ou viúvas entrevistadas disseram que fizeram a cirurgia – um número que impressiona até muitos egípcios.

Mas agora, de repente, as forças que se opõem à mutilação genital estão pressionando como nunca fizeram antes. Mais de um século depois das primeiras tentativas de acabar com esse costume, o movimento acabou com um dos maiores obstáculos: não é mais considerado um tabu para discutir em público. Essa mudança parece ter coincidido com uma pequena, mas crescente, aceitação de conversas sobre sexualidade humana na televisão e no rádio.

Pela primeira vez, defensores do fim da prática, jornais e telejornais mostram agressivamente detalhes de operações que deram errado. Esse verão duas meninas morreram e o assunto foi manchete do Al Masry al Yom, um jornal popular e independente. Ativistas enfatizaram as mortes com demonstrações públicas, que geraram ainda mais cobertura.

Mutilação genital feminina aqui do lado


Todo mundo sabe que a operação de retirada do clitóris feminino é realizada em áreas islâmicas ou africanas. Coisa que aliás costuma nos deixar perplexos: por quê? Como? O que ninguém imagina é que este costume também ocorre aqui pertinho, entre alguns grupos indígenas da Amazônia. Ou pelo menos, conforme descobri por acaso em uma viagem recente, era realizada em grande estilo no Peru, pelos Shipibo-Conibo, até os anos 70. Alguns pesquisadores acreditam que em comunidades mais isoladas as amputações ainda estejam em voga.

Os Shipibo são um povo guerreiro da família Pano que vive na região do Ucayali. Segundo sua tradição, depois da primeira menstruação, toda jovem deve se submeter à circuncisão feminina. Isto ocorre numa grande festividade, a anissehati. Durante um ano a família planta mandioca e cria animais para serem sacrificados nesta ocasião. A festa dura uma semana. A inicianda é mantida isolada e com uma dieta alimentar especial. Depois é adornada e pintada. O primeiro passo do ritual é o corte do cabelo, a primeira vez na sua vida. Durante vários dias a comunidade canta e dança animadamente, esperando o masato – bebida de mandioca fermentada – macerar. No último dia, a jovem se junta a todos. Ela permanece no meio de duas mulheres que a seguram, indo e voltando para o centro da roda onde está o masato. A cada vez ela bebe um pouco. Do lado, duas filas, uma de homens e outra de mulheres. As mulheres puxam os homens para frente e para trás. Todos chegam até a panela e bebem também.

Quando a jovem está embriagada a ponto de perder os sentidos, quatro mulheres a levam a uma casa. Suas pernas são amarradas em paus de madeira estendidos sob um esteira no chão. A especialista no corte amarra uma faixa bem apertada em volta da cintura da noviça. Com uma faquinha pontuda própria para isto ela desfere o golpe fatal. O clitóris e pedaços de cabelo são guardados escondidos e tornam-se objetos de tabu. Segundo dizem, no clitóris não fica um buraco mas sim um espaço liso: “uma canoinha sem a sua crista”.

Uma argila arenosa é aplicada para que o local não junte, não feche e possa cicatrizar. E uma corda feita de uma árvore é amarrada em volta da cintura. Esta corda é usada durante um mês, sendo retirada para urinar, ato que dói bastante.

Também há um banquinho especial para sentar meio de lado. Relata-se que as mulheres mais fracas podem ficar até um mês na cama; as mais fortes já andam depois de uma semana. No passado mais distante (nenhuma das mulheres que entrevistei passou por isto), um pênis de terracota era introduzido na vagina, para romper também o hímen e impedir que a vagina se juntasse à cicatriz.

Se estas práticas envolvem toda uma tecnologia específica, por outro lado é curiosa a falta de consenso quanto ao porquê das operações. Indagando a respeito, obtive respostas tão diversas quanto aleatórias: “a mulher com clitóris fica ociosa”; “para que a mulher engorde”; “para tirar o mau cheiro”; “se não tirasse, cresceria um pênis ali”; “para ela não virar lésbica”. Outras respostas foram algo tautológicas: “se não todas as suas inimigas caçoariam dela”, “ela seria discriminada”, “a verdadeira mulher não tem”. Enfim, ao insistir muito, acabava assim: es la costumbre ou era una moda. (*) E muitas avós sem clitóris disseram não saber o porquê. (Aliás, as razões atribuídas ao abandono da prática foram tão variadas como as anteriores). O fato é que a capadura era, além de uma obrigação, uma virtude, um ato de cidadania. A mulher que não tirasse não arranjaria homem. Sem chance.

Os estudiosos titubeiam, porque é um tema reservado da cultura. O antropólogo peruano Manuel Cuentas afirma que se trata de “um rito de transição: ela entra com um status e sai com outro, apta para o matrimônio”. Mas por que o clitóris? Sabemos que existem vários rituais de passagem em diversas culturas e que deformações no corpo são comuns a muitas delas, como é o caso das “mulheres girafas” da Ásia ou dos lábios das Sara da África. Mas no caso em questão, como fica o prazer da mulher?

Segundina Cumapa, presidente da Organización de Mujeres Indígenas de la Amazonia Peruana, presenciou a excisão de sua irmã mais velha. Ela afirma que a operação não faz diferença para o ato sexual: “a cultura ocidental pensa que se tirar o clitóris acabará o prazer da mulher. Mas para os Shipibo não é assim. Com ou sem, temos tesão e gostamos. Se eu tivesse idade na época, gostaria de ter feito também”. A líder indígena parece vir ao encontro do pensamento antropológico contemporâneo. Mariza Corrêa, especialista em estudos de gênero, esclarece que “a noção de prazer centrada no clitóris é ocidental. Assim, não cabe perguntar se eles cortavam 'aquilo' para cortar o prazer - e sim, por que cortavam, quais são as razões locais.” Já Jacques Tourneau, etnocientista francês, especula que talvez a excisão represente uma castração simbólica para dominar as mulheres e uma forma de retirar seu apetite sexual, diminuindo assim as relações extramatrimoniais. Para a psicanálise, o clitóris pode ser considerado como um pequeno pênis e sua extirpação tira o aspecto masculino e categoriza a jovem sem ambigüidade como mulher – outro ponto em que a teoria nativa coincide com a científica. Além disto, o fenômeno tem sido interpretado como uma forma de distinguir as mulheres das outras fêmeas primatas, cujos clitóris às vezes possuem vários centímetros.

Erminia Bartales, uma anciã que não sabe quantos anos tem, lembrou que estava tranqüila no dia da operação e alegre porque sabia que teria marido e filhos (mas depois sentiu muita dor). Conversamos através de um intérprete, que traduzia do Shipibo para o castelhano. De repente ela começou a simular uns bocejos, sinalizando que já estava cansada daquele papo. Então suspirou algo. As crianças que observavam começaram a rir e a entrevista chegou ao fim. Depois o tradutor me contou que ela havia dito “coitadinho do meu clitóris” – ao que todos responderam, se divertindo: esta huequita la abuelita!(**), repetindo sem parar. Ninguém, exceto eu, parecia muito impressionado ou ávido por um sentido profundo. Ao contrário, o ambiente era de leveza. Coisas normais da vida da mulher, que, como tantas outras da cultura Shipibo, por causa dos brancos, já mudaram e não são mais como antes.