"Eu também lembro do toque gélido dos azulejos do banheiro embaixo de meu corpo nu, e vozes desconhecidas e cochichos interrompidos de vez em quando pelo som de algo metálico raspando, o que me lembrou o som de um açougueiro quando afia a faca, antes de matar uma ovelha em um abatedouro."
Nawal El Saadawi é uma líder feminista egípcia, socialista, médica,
novelista e autora de uma clássico sobre as mulheres no Islã, A Face escondida de Eva.
Ela teve uma carreira distinta como diretora de Educação sobre Saúde no Ministério da
Saúde no Cairo, até ser sumariamente dispensada de seu cargo em 1972, como conseqüência
de suas de suas atividades e artigos políticos. O pior estava por vir, quando ela foi presa em
1981 com outras milhares de mulheres, por "crimes contra o Estado". Ela foi libertada apenas
após o assassinato do presidente Sadat. "Memórias de uma Prisão de Mulheres III"relata sua
experiência.
PARTE 1 A Metade Mutilada
1. A Questão que Ninguém Responderia.
Eu tinha 6 anos de idade naquela noite. Estava deitada em minha cama, quente e em paz naquele
estado prazeroso onde fica a metade do caminho entre estar acordado e dormindo, com os sonhos
róseos de infância sobrevoando a mente, como contos gentis em uma rápida sucessão. Eu senti
algo se movendo debaixo dos cobertores, algo como uma mão enorme, fria áspera percorrendo meu
corpo, como que procurando alguma coisa. Quase simultaneamente outra mão, tão fria, grande e
áspera quanto primeira tampou a minha boca, como me prevenindo para não gritar. Eles me carregaram
para o banheiro.
Eu não sei quantos deles eram, e também não lembro de seus rostos, ou se eram homens ou mulheres.
O mundo parecia, para mim, estar embrulhado numa neblina negra que não me deixava enxergar. Ou talvez
eles tivessem colocado algo para cobrir mus olhos.
Tudo o que eu lembro é que eu estava assustada e que eram muitos deles, e que prenderam minhas
mãos, meus braços e minhas coxas com ferro, para que não pudesse resistir ou mesmo me mover.
Eu também lembro do toque gélido dos azulejos do banheiro embaixo de meu corpo nu, e vozes
desconhecidas e cochichos interrompidos de vez em quando pelo som de algo metálico raspando,
o que me lembrou o som de um açougueiro quando afia a faca, antes de matar uma ovelha em um
abatedouro.
Meu sangue estava congelado em minhas veias. Para mim parecia que ladrões haviam invadido meu
quarto e me seqüestrado de minha cama. Eles estavam se preparando para cortar minha garganta,
como sempre acontecia com garotas desobedientes como eu nas estórias que minha velha avó gostava
tanto de me contar.
Eu agucei minhas orelhas tentando captar o som metálico. No momento em que este cessou, foi como
se meu coração tivesse parado de bater com ele. Eu não podia ver, e de algum modo minha respiração
parecia que havia parado também. Tentei imaginar o que estava fazendo o barulho cada vez mais perto
de mim. De algum modo aquela coisa não estava se aproximando do meu pescoço como eu esperava,
mas sim de outra parte do meu corpo.
Em algum lugar abaixo da minha barriga, como que procurando algo enterrado entre minhas coxas. Naquele
momento eu percebi que minhas coxas haviam sido separadas, e que cada um de meus membros inferiores
estavam mais longe possível um do outro, seguros por dedos de aço que eu nunca mais poderei esquecer
sua pressão. Eu sentia que a faca ou lâmina estava indo direto para baixo, em direção a minha garganta
Então derrepente a ponta metálica afiada pareceu cair entre minhas coxas, e lá cortar um pedaço de carne
de meu corpo. Eu gritei de dor, apesar da mão forte que tampava minha boca; uma dor que não era apenas
dor, era como uma chama ardente que percorreu todo o meu corpo. Depois de alguns momentos eu vi
uma piscina de sangue ao redor de meu quadril.
Eu não sabia o que eles haviam tirado do meu corpo e não tentei descobrir. Apenas chorei e chamei a
minha mãe por ajuda. Mas o pior choque de todos ocorreu quando eu olhei em volta e a vi de pé ao meu lado.
Sim, era ela, eu não poderia estar enganada, em carne e osso, bem no meio desses estranhos, falando com
eles e sorrindo para eles, como se eles não tivessem participado do corte de sua filha momentos atrás
Eles me carregaram até minha cama. Eu os vi pegando minha irmã, que era dois anos mais nova, exatamente
do mesmo modo com que eles me pegaram alguns minutos antes.
Eu gritei com toda minha força. Não! Não! Eu podia ver o rosto de minha irmã preso entre as grandes mãos
ásperas. Seus grandes olhos pretos e esbugalhados encontraram os meus por um rápido segundo, um
relance negro de terror que eu nunca esquecerei. Um tempo depois e ela se foi, atrás da porta do banheiro
onde eu havia acabado de estar. O olhar que nós trovamos parecia dizer: 'agora nós sabemos o que é. Agora
sabemos onde está nossa tragédia. Nós nascemos parte de um sexo especial, o sexo feminino. Nós
somos destinadas a experimentar o desgosto, e a ter parte de nosso corpo rasgado por mãos frias e insensíveis'.
Minha família não era uma família egípcia sem educação. Ao contrário, ambos os meus pais tiveram sorte
o suficiente para ter uma ótima educação para os padrões daquela época. Meu pai era um formando da
universidade daquele ano (1937), e havia sido apontado como controlador geral da Educação da Província
de Menoufla, na região do Delta do Cairo do Norte. Minha mãe havia sido educada em escolas francesas
por seu pai, que era diretor geral de Recrutamento do Exército.
Não obstante, o costume de circuncidar garotas era muito presente naquela época, e nenhuma menina
conseguia escapar da amputação de seu clitóris, não importando se sua família vivia numa área rural
ou urbana.
Quando voltei para a escola após ter me recuperado da operação, perguntei ás minhas colegas de classe
e amigas sobre o que aconteceu comigo, apenas para descobrir que todas elas, sem exceção, haviam
passado por essa experiência, não importando a que classe social elas pertenciam (classe alta, classe
média ou classe média-baixa).
Em áreas rurais, entre as famílias mais pobres, todas as garotas são circuncidadas, como descobri
mais tarde por meus parentes em Kar Tahla. Esse costume ainda é muito comum nas vilas, e mesmo
nas cidades uma grande proporção de famílias acredita ser necessária a operação.
Tradução: Olívia Cappi
Revisão: Allan Ednei
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